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CRUEL: PRIMEIRO CAPÍTULO PELOS OLHOS DE CRUEL DEVIL
O primeiro capítulo de CRUEL narrado por Cruel DeVil.
O PRIMEIRO CAPÍTULO DE CRUEL — PELOS OLHOS DE CRUEL DE VIL
Dívida moral.
É o que Collumbus DeVil diz na carta. Um pedaço de papel rabiscado com palavras vagas e desconexas que fazem menos sentido cada vez que releio. O advogado disse que foi a última coisa que meu pai escreveu antes do acidente e que ele exigiu que fosse acrescentada ao testamento — com urgência. Não reclamei porque não tinha plena noção das implicações. Sendo sincero, eu só queria liberdade plena para, enfim, usufruir do dinheiro da herança que por anos amaldiçoei e que me custou grandes sacrifícios e renúncias. Então ri quando o advogado falou sobre a garota. Quando ele acrescentou que ela havia ficado órfã em decorrência de um incêndio ocorrido poucas horas depois da carta chegar às minhas mãos, precisei acender um cigarro — hábito nojento — e tentar silenciar as marteladas de dor de cabeça que me torturam desde então.
Não é possível. A enorme onda de desgraças que assola minha vida parecia ter chegado ao fim com a morte de meu pai, mas vejo agora que não passou de um breve recolher ao mar para uma nova e mais poderosa onda de destruição.
— A garota é de inteira responsabilidade da família DeVil daqui em diante.
Estalo a língua.
— Mande-a para Pico do Inverno, para Adamastor — retruco. — Não tenho nada a ver com isso.
O advogado ajeita os óculos redondos, desconfortável. Todo mundo me olha da mesma maneira, como o mesmo desconcerto. É divertido de assistir.
— O finado senhor DeVil deixou claro que ela deve viver na mansão DeVil e receber assistência absoluta para toda e qualquer necessidade. Ele enfatizou que é uma medida vitalícia.
Meus olhos quase saltam do rosto.
— Vitalícia? O senhor está brincando...
— Leia novamente, senhor, está tudo na carta.
Quero amassar o maldito papel. Enfiar na boca, mastigar e engolir. Se eu o tivesse encontrado primeiro, teria destruído e a tal órfã jamais seria um inconveniente.
— Certo. Quais são as minhas opções? Não é possível mandá-la para uma instituição e financiar os custos?
O advogado estremece de impaciência.
— Como eu disse, senhor, é uma exigência do senhor Collumbus. Foi escrita pelo próprio punho dele, portanto, impossível de ignorar. Devo lembrá-lo de que o descumprimento de qualquer condição imposta por seu pai resulta na suspensão do acesso à herança?
Cerro os punhos para não agarrar o pescoço dele.
— Não é necessário.
Xingo baixo e esfrego o rosto.
Maldito seja meu pai. Maldita seja aquela carta.
Para fins legais, atesto que estou em perfeito juízo enquanto escrevo esta nota. Não tenho tempo suficiente para esclarecimentos. Uma dívida moral me coloca em posição de total responsabilidade pela senhorita Rose Vallahar, a quem devo amparar e assistir até o fim da vida dela. Pelos meios necessários, ela deve ser trazida imediatamente à mansão DeVil, onde viverá daqui em diante sem que nada lhe falte. Isso deve ser acrescentado ao meu testamento, a fim de que, caso algum infortúnio me aconteça, meu filho, Cruel DeVil, se encarregue de cumprir tais exigências sem falta e sob a condição de perder o direito à herança, se recusar. É a minha vontade incontestável. – Collumbus DeVil.
Maldito acidente que não o matou antes que ele escrevesse tal atrocidade.
Apago o cigarro após uma tragada final e fito o advogado nos olhos castanhos.
— Onde ela está?
Ele checa o celular rapidamente.
— Foi levada à delegacia para prestar depoimento.
— Qual a causa do incêndio?
— A policial que entrou em contato comigo não informou. Parece criminoso, mas ainda não encontraram nenhum suspeito. A moça é a única sobrevivente e ainda deve estar em perigo, senhor.
Suspiro.
Ela não deve ser nada além de mais uma vítima dos caprichos de nossa desgraçada família DeVil. Não me surpreenderia descobrir que Collumbus arruinou os pais dela de alguma forma e, durante algum surto deturpado de remorso, decidiu tomar conta da filha como seu último desejo antes de morrer. Desgraçado. No fim das contas quem vai ter que limpar a bagunça sou eu.
— Informe o endereço da delegacia ao meu motorista — digo ao advogado. — Estou indo para lá agora.
Choveu muito durante o fim da tarde e as ruas da cidade brilham. Gotas de água escorrem pela janela do carro e me forço a observá-las para controlar os nervos. O trajeto até a delegacia é longo e perturbador, mas tudo pior no instante em que finalmente encontro a garota.
Ela é mais velha do que eu esperava e definitivamente não parece precisar da assistência de um orfanato ou de um responsável adulto — um apartamento no centro da cidade e uma boa quantia de dinheiro daria um jeito na vida dela sem problemas. Infelizmente parece que sou o único a pensar assim. No instante em que me vê, a policial ao lado dela me fulmina com um olhar desconfiado e cerca a garota como se eu fosse o lobo-mau à espreita. Você é perverso, ela me acusa com o olhar. E não está errada. Mas minha perversão não é do tipo que ela pensa ao insinuar:
— E o senhor se julga apto a zelar por essa criança?
É uma situação tão absurda que me refreio para não gargalhar de nervoso.
Sim, sou perverso, mas que tipo de degenerado você pensa que eu sou?
A garota nem sequer se parece uma criança, só é baixa. É bonita como milhares de outras garotas loiras de olhos verdes e tem um brilho ingênuo no semblante que imediatamente me tira do sério. É sem dúvidas o tipo de pessoa crescida num cercadinho, com uma vidinha segura, perfeita e patética. Eu a desprezo imediatamente.
— Mas é claro — respondo, imperturbável. Minha herança depende disso.
Encaro a policial esperando que diga mais alguma coisa, qualquer coisa, que funcione como obstáculo e evite que a garota vá embora comigo. Mas ela não faz qualquer outra insinuação e simplesmente abraça a garota, o que, aos meus olhos, a torna uma completa inútil.
Perco a paciência.
— Venha, Rose Vallahar — digo, tocando o ombro dela. — Vamos para casa.
A garota tenta parecer corajosa, mas treme tanto que é cômico. Pobre coitada. Teria mais chances de uma vida fácil e feliz se nunca se metesse com a família DeVil. Ela me segue para fora da delegacia, mas para na calçada e fica encarando o motorista como se ele fosse um fantasma. Sinto uma veia saltar no meu pescoço.
— Primeiro as damas — resmungo, indicando a porta do carro já aberta.
A garota me encara e suas bochechas ficam escandalosamente rosadas. É a primeira vez que vejo uma pessoa enrubescer bem diante dos meus olhos. Fico curioso. Que outros tipos de expressões ela é capaz de fazer? Será que esse rostinho perfeito de anjo pode se contorcer em puro ódio? Ou sarcasmo? E dor? Como ficaria o rosto dela em pura agonia?
Descubro que gostaria de descobrir.
Ela é muito quieta. Está assustada e completamente envolta por uma aura de luto com a qual não me identifico — a família que perdi, minha mãe e meu pai, não deixou muito mais que alívio por sua agora eterna ausência; nunca senti tristeza por perder nenhum deles. Fico imaginando quais expectativas essa garota tem em relação a mim. Se espera que eu a console, se pretende criar algum tipo de vínculo comigo agora que passaremos a viver sob o mesmo teto. A ideia me perturba a ponto de acelerar meus batimentos cardíacos e eu acendo o segundo cigarro da noite simplesmente para ter algo para fazer com as mãos.
Flagro a garota olhando para mim com seus grandes olhos verdes. Tão logo encontra meu olhar, ela se esquiva como um raio. Oh, pobre e patética criatura. Ela me lembra de como eu era no passado, na adolescência — o que me gera uma nova onda de desprezo.
— Quer um, Rose? — digo baixinho, testando o som do nome dela na minha voz. A pior parte é que gosto desse nome. Ela recusa o cigarro sem me encarar e eu decido intensificar a provocação. — Ah, é mesmo — rio com sarcasmo —, você é somente uma criança. Uma boa criança, por sinal. E boas crianças não fumam, estou certo?
Ela concorda, ainda evitando olhar para mim, mas vejo seu lábio inferior estremecer. Ora, ora, há uma fagulha de alguma coisa aqui. Parece que ser chamada de criança a desagrada mais do que eu esperava.
— Não sabe falar, Rose?
— Sei — diz de modo ríspido. A expressão no rosto dela fica sombria enquanto ela analisa meu rosto de soslaio e de repente ela não demonstra mais medo, mas uma altivez quase soberba, quase raivosa. Interessante. — Agradeço se o senhor parar de olhar para mim desse jeito, senhor DeVil.
Diabinha depravada! Ela está mesmo tentando virar o jogo contra mim? Contra Cruel DeVil? Não consigo refrear o riso.
— Desse jeito. Pergunto-me... que jeito seria esse...?
Rose Vallahar fica muito ofendida, mas recua em sua derrota e nenhum de nós diz mais nada até estarmos na mansão DeVil. Sob a luz do lustre do hall é possível vê-la com muito mais clareza e eu a pego olhando muito minuciosamente para mim. Conheço a expressão que brilha em seu rosto agora e sinto uma pontada de decepção.
Ela está me admirando.
Aquela fagulha de raiva, de desafio, já se apagou e foi logo substituída por um outro tipo de centelha — um tipo definitivamente mais perigoso que ameaça colocar a nós dois num caminho arriscado demais. Odeio ser olhado desse jeito. Odeio olhos que buscam em mim algo além da superfície. E, quanto mais tempo passo com essa garota, mais a odeio também.
— Sabe — rosno para ela —, agradeço se a senhorita para de olhar para mim desse jeito.
Patética tal qual alguém que é pego fazendo o que não deve, ela recua no mesmo segundo.
— Desculpe.
Isso não vai funcionar.
Eu já não a suporto. Ela é uma pedra no meu sapato, um fardo jogado sobre minhas costas que me vejo coagido a carregar, um par de algemas que ata meus pulsos e me impede de agarrar minha tão desejada liberdade. É uma ninguém, uma desconhecida que recebeu total atenção e incondicional benevolência de meu pai — coisas que eu, como único filho dele, tive que implorar durante anos como um cachorro miserável para receber em pequenas e risíveis quantidades.
Não vai dar certo.
Eu não a quero aqui.
Desejo que ela desapareça da minha vista e nunca mais me incomode de novo.
E, uma vez que não posso me recusar a abrigá-la, farei com que se arrependa de ter aceitado entrar naquele carro comigo. Farei com que ela queira partir. Tornarei a existência dela um verdadeiro inferno, quebrarei seu espírito se necessário for, mas não permitirei que Rose Vallahar atrapalhe um segundo sequer da minha vida.